As plataformas de mídias sociais que revolucionam, curam, propiciam experiências de satisfação e alívio podem criar dependência e dor, na mesma proporção. Para onde estamos caminhando, afinal, em termos de saúde, tecnologia e solidão e onde podemos chegar com tudo isso?
Fonte: Bored Panda
Um dos temas mais importantes debatidos na edição 2018 do SXSW, para além das tendências, foi justamente algo bem delicado e intrigante: a saúde mundial. E sob vários pontos de vista. A legislação em diferentes lugares do mundo, os impactos da solidão no corpo e na mente humana e, acima de tudo, uma tecnologia que pode revolucionar sistemas, prontuários e interligar diagnósticos e uma população inteira, mas que pode, simultaneamente, adoecê-las e criar dependências em diferentes graus.
Em uma série de conferências realizadas ao longo do evento, especialistas tentaram discutir (e por que não dizer, decifrar?) de que forma a tecnologia pode ser essencial nos assuntos ligados à saúde pública e privada e em que ponto exato ela deixa de ser um aliado para transformar-se num vilão.
A gente pode começar falando, entre as investigações positivas, por exemplo, na adaptação dos chamados exoesqueletos, aquelas engenhocas que podem melhorar a qualidade de vida de deficientes e propiciar uma “mobilidade além da cadeira de rodas”, permitindo que eles possam permanecer em pé e caminhar.
Isso pode garantir a estas pessoas uma melhor qualidade de vida, sem atrofia dos membros e acúmulo de lesões na pele – males que costumam atingir pessoas que passam muito tempo sentadas.
Alguns desses exoesqueletos, inclusive, poderiam ser controlados por ordem direta do cérebro. Seriam a mais genial manifestação de “wearables”, as tecnologias que podem ser agregadas ao corpo. Inclusive uma das novidades apresentadas por lá foi justamente o Harmony, um robô criado por uma equipe da Universidade do Texas que pode ajudar pacientes vítimas de lesões neurológicas causadas por AVCs.
Ao longo dos dias de evento, foram várias as discussões sobre atendimentos remotos a pacientes e a criação e adequação de prontuários eletrônicos, que podem facilitar o atendimento a um paciente, seja qual for o médico que ele consultar.
Até mesmo na medicina, a palavra de ordem do momento é “experiência”: é preciso garantir que a pessoa não apenas fique curada, mas repense sua vida de maneira saudável e, de preferência, com o auxílio da tecnologia.
A realidade virtual e a realidade aumentada também entraram em pauta, como possíveis aliadas em processos de fisioterapia e reabilitação. Outro exemplo positivo está nos investimentos feitos pelo Google neste sentido. O modelo de machine learning desenvolvido pelo gigante da tecnologia está muito próximo de ajudar a detectar câncer com um índice altíssimo de precisão.
Em debates mais “pé no chão”, maneiras concretas para que o uso dos dados armazenados pelos hospitais durante tratamentos e internações possa de fato ajudar os médicos na tomada de decisões. E, claro, uma forma de garantir a segurança dessa enorme base de informações, de forma a resguardar a segurança e a privacidade das pessoas.
Mas são debates, como sempre se vê na SXSW, de tendências e possibilidades futuras. Algumas coisas mais próximas da realidade viável, outras até parecem sonhos de uma noite de verão no Texas, mas já começam a ganhar forma e devem chegar ao público ao longo dos próximos anos. O mais curioso foi que, desta vez, a tecnologia passou a ser considerada também como uma adversária para a saúde mental.
A psicóloga Ramana Durvasula, professora na Universidade Estadual da Califórnia, em Los Angeles, e especialista em narcisismo, abordou em sua palestra, por exemplo, como essa característica humana é incentivada o tempo todo pela tecnologia, especialmente no uso das mídias sociais, e acaba por “destruir a saúde mental das pessoas”, devido à dificuldade em conviver com quem fala de si mesmo em tom elogioso o tempo todo.
Sim, você está pensando naquele amigo que tira 20 selfies de si mesmo todos os dias na academia – e em como cada uma daquelas imagens te incomoda por te obrigar a olhar para sua própria barriga em estado de crescimento.
Isso faz mal à sua saúde mental: causa irritação, frustração, inveja, sentimentos que podem virar gatilhos para crises de ansiedade ou depressão. Eventualmente, essas pessoas perfeitas nem sequer existem; há vários perfis no Instagram, a rede por excelência do narcisismo, que são falsos, chamados de “modelos digitais”, personagens que arrastam consigo dezenas de milhares de seguidores, que se inspiram na maquiagem, no vestuário e no estilo de avatares.
Você já ouviu falar de Shudu Gram?
E mesmo quem passou, desenvolveu projetos ou liderou equipes nestas grandes plataformas sociais parece ter se arrependido e faz alerta. “As redes sociais estão dilacerando a sociedade”, disse Chamath Palihapitiya, um ex-executivo do alto escalão do Facebook que se lamenta de ter participado da criação de ferramentas que promovem este modelo.
E, vejam só, ele não foi o único. Sean Parker, um dos primeiros presidentes do Facebook, afirmou que a empresa “explora uma vulnerabilidade da psicologia humana” o que acaba por definir um “ciclo de retroalimentação de validação social”.
Outro executivo da companhia, Antonio García-Martínez, diz não acreditar na plataforma quando ela fala que não influencia as pessoas em função dos dados que coleta sobre elas e escreveu um livro, Chaos Monkeys, sobre seu trabalho na empresa.
Um vício com impacto no corpo
Fonte: Bored Panda (Asaf Hanuka)
As mídias digitais viciam. Mais do que isso: são feitas para viciar. Os exoesqueletos sonhados pelos médicos de certa forma já existem e atendem pelo nome de telefone celular: um eletrônico que serve quase como um apêndice de nossos membros superiores.
Faça a experiência: vá a um restaurante comum na hora do almoço e conte quantas pessoas, sozinhas ou acompanhadas, estão mais entretidas com seus eletrônicos do que com a própria comida ou o companheiro de mesa – e não há plaquinha de “Não temos wi-fi, conversem entre si” que faça as pessoas desgrudarem os olhos da tela.
As consequências para a saúde das pessoas já estão começando a aparecer. Várias pesquisas apontam o impacto do excesso de tecnologia para a visão, com o crescimento de casos de fadiga visual, que podem levar a outras doenças. Há médicos sugerindo o uso de lentes fotossensíveis para reduzir tal impacto.
Há também relatos de ortopedistas sobre o aumento de casos de dores na coluna por causa da postura incorreta de quem fica o tempo todo de olho no celular, com a cabeça inclinada para a frente; segundo pesquisa feita por uma equipe norte-americana, inclinar-se para a frente por causa do smartphone é como usar um colar com quatro bolas de boliche penduradas – ou cerca de 27 kg.
Mas o impacto maior mesmo é para a saúde mental. A gama de aplicativos que fazem de tudo nos obriga a manter o celular sempre por perto, causando uma dependência impensável anos atrás.
Você se lembra da última vez que esqueceu de levar o carregador do aparelho para o trabalho e ficou horas sem poder consultá-lo? “Não posso ficar sem celular, é minha agenda, converso com meus filhos, monitoro meu saldo bancário”, você já está pensando enquanto lê o texto. Além disso, é ali que você consulta suas redes sociais, bate papo à toa para fugir um pouco do estresse do trabalho…
Nas escolas, o grande desafio dos professores hoje não é conseguir o silêncio nas salas de aula, mas fazer com que os estudantes foquem sua atenção para a lousa – muitas vezes, ela também eletrônica – em vez de olhar para o celular.
Estratégias para adequar o ensino à modernidade vêm sendo feitas, mas ainda encontram resistência entre os mestres mais tradicionalistas e sofrem com dificuldades de infraestrutura, especialmente em escolas públicas.
O contexto anda tão complexo que chegamos ao ponto de viver em uma era na qual surgem “estrelas” de Instagram que sequer existem, mas que conquistam legiões de fãs. Em que jovens começam a procurar cirurgia plástica para ficarem mais parecidas com as imagens que produzem de si mesmas, as famosas selfies, a partir de filtros disponibilizados pelas plataformas.
Um momento até de discussões sobre o que deve ser feito com os “restos digitais” de pessoas que morrem. Uma fase em que nós nunca estivemos tão conectados e com o sentimento de tão sozinhos.
A humanidade no centro
Fonte: Bored Panda (Angel Boligan)
Vinton Cerf, vice-presidente do Google, foi o idealizador de um projeto chamado People-Centered Internet – em tradução livre, “a internet focada nas pessoas”. No site oficial, ele se apresenta como “uma coalisão internacional criada para garantir que a internet continue a ajudar as pessoas a satisfazer suas necessidades e atingir seus objetivos online”.
Entre os benefícios desse uso estariam “o crescimento autodirigido por meio de educação, oportunidades econômicas e o crescimento de uma comunidade através dos meios de comunicação”.
Na prática, a entidade tem feito parcerias para ampliar a infraestrutura digital em comunidades pobres ou devastadas por catástrofes naturais. A ideia, garantem os criadores, é estender cada vez mais ao mundo os benefícios e vantagens da internet.
Tudo isso se parece muito com as previsões otimistas feitas por especialistas como o linguista canadense Marshall McLuhan, que lá nos anos 60 pensava no mundo como uma “aldeia global”, com distâncias cada vez mais curtas por causa das redes de comunicação (ele morreu pouco após o estabelecimento da TV por satélite).
Ou do sociólogo espanhol Manuel Castells, seu herdeiro, que sempre destacou a “cultura da internet” como algo que valorizava a colaboração e a construção coletiva de projetos. Eles só não contavam com a dependência do homem em relação à tecnologia.
É sobre essa dependência real que alguns cientistas começam a se questionar. É certo colocar toda nossa vida sob controle de um mecanismo frágil e que pode nos deixar na mão a qualquer momento, por causa de uma queda ou mesmo de um furto?
Em palestra no TED norte-americano, em abril, o cientista Jaron Lanier, um dos maiores especialistas do mundo em realidade virtual, apontou um grande dilema: a cultura gratuita que encantou a internet em seus primórdios levou à necessidade de ações para, afinal, pagar as contas.
E isso culminou no estabelecimento, aos poucos, de uma gigantesca indústria de publicidade dirigida, encarnada hoje pelos gigantes Facebook e Google, que, na visão de Laneir, “não é mais propaganda, é modificação de comportamento”.
Sabe aquela sensação de prazer quando sua selfie ganha um like do gatinho da mesa ao lado no escritório? Para ele, é mais ou menos a mesma coisa que um comportamento dirigido e treinado, como o ratinho de laboratório que ganha um pedaço de queijo depois de percorrer o caminho correto entre duas gaiolas.
O caminho a percorrer, como em tudo nessa vida, parece ser o do meio termo. Se não é possível abrir mão dos gadgets o tempo todo, por conta dos compromissos e realizações profissionais, que saibamos nos preservar alguns momentos.
Como na hora do almoço: que tal, em vez de ficar no celular, se permitir dar atenção ao cheiro da comida, ao sabor da sobremesa, aos sons dos pássaros pelo caminho e à conversa com o amigo? Não é fácil, mas não é impossível tentar.